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Funchal Jazz 2023

(Todas as fotos por Márcia Lessa)

 

E terminou o Funchal Jazz 2023.
Uma semana de concertos - treze, workshops, uma exposição de fotografia, jam sessions: o Funchal Jazz é mais do que um conjunto de concertos avulsos, mas um verdadeiro festival, consistente, concebido de acordo com um modelo que não se limita a gerir a oferta determinada pelos promotores ou os prémios da indústria, mesmo se tem em conta o público alargado, que nem sempre está familiarizado com o Jazz. Programação com critério, e uma produção irrepreensível (ademais para um grande festival e onde tudo desliza em rolamentos bem oleados, e destacaríamos o som magnífico em ambos os espaços – Parque de St. Catarina e Jardim Municipal-, capaz de entender o que é um festival de Jazz (e não um festival pop), onde os detalhes contam – e que autoriza ouvir o subtil deslizar das escovas das baterias, os agudos impossíveis da voz de Samara Joy ou os mais graves dos contrabaixos. Mas o apuro da produção prolonga-se para o que se esconde no invisível, na eficácia (e simpatia) dos transfer, ou na simpatia (e eficácia) do backstage ou na pontualidade do início dos concertos; naquelas pequenas coisas que só se revelam quando não funcionam.

Claro que os imponderáveis são isso mesmo – imponderáveis –, e nada pode contrariar as forças da natureza quando os ventos impedem os aviões de aterrar; e a Madeira é uma ilha; o que perturbou o arranque do festival no Jardim Municipal, levando a alguma alteração do alinhamento dos primeiros concertos. Tudo resolvido ainda assim; nenhum concerto cancelado, e os treze concertos programados concretizados.

Seguindo o modelo iniciado no ano passado o Funchal Jazz programou para os primeiros dias grupos e projectos dirigidos por músicos madeirenses e, se alguma coisa haverá a observar, é que cada vez mais o Jazz madeirense foi capaz de romper com a insularidade e possui já um nível que equivale ao que se faz no continente ou por esse mundo fora. Notar-se-á, talvez, uma prevalência das cantoras no que respeita a instrumentos mas, no que toca a qualidade, o facto de o Conservatório da Madeira ter, nos últimos anos, produzido alunos com as aptidões necessárias à entrada para a Escola Superior de Música de Lisboa ou o conservatório de Amsterdão, será significativo, e o retorno desses músicos ofereceu, por sua vez um impulso ao Jazz madeirense. O que é que o Jazz madeirense tem pois de substancialmente diferente do Jazz que se pratica no resto do mundo? – Nada, diria, como veremos.
Os primeiros dias do festival foram pois atribulados, e devido aos ventos que assolaram a ilha, que levaram ao cancelamento ou adiamento de voos, obrigando à alteração do alinhamento dos concertos do Jardim Municipal.

Bernardo Moreira Quinteto
O primeiro concerto a que assisti (tendo falhado o concerto da cantora  Laura Silva), teve como protagonistas uma banda de recurso, dirigida por Bernardo Moreira; e uma chamada de madrugada foi quanto bastou para o contrabaixista reunir um quinteto que nunca tinha tocado junto - Bernardo no contrabaixo, Ricardo Toscano no saxofone alto, Hugo Lobo nos teclados, Francisco Andrade no saxofone tenor e Caio Oliveira na bateria -, mas o Jazz é assim mesmo. Uma mão cheia de standards – On Green Dolphin Street, Cherokee, St. Louis Blues, Round Midnight, entre outros –; um Jazz saboroso e fluido, sem pretensões, executado por uma banda que se diria existir desde sempre. E um som perfeito para um concerto ao ar livre, com recorte. Um bom arranque para o Funchal Jazz, contrariando os contratempos.

André Santos Vereda
Ao terceiro dia o madeirense André Santos conseguiu enfim chegar ao Funchal e, com a banda completa, ensaiar nessa mesma tarde, pela primeiríssima vez, os temas que tocariam. Vale a pena dizer que, mesmo se ele conhece bem os músicos que convocou, esta foi a primeira vez que eles se encontraram juntos em palco. Por outro lado André Santos tem tido uma actividade recente fora do Jazz, e daí também a minha espectativa. 
Vereda – assim chamou ao projecto -, reuniu dois madeirenses e dois músicos do continente, numa formação algo atípica, sem baixo: guitarra, bateria e dois saxofones.
Música arriscada para aquele espaço e público, angulosa, moderna, sem concessões, com composições relativamente simples que se constroem e sustentam de igual forma nos arranjos e nos dotes de improvisação dos protagonistas. «Escolhe um animal e vem brincar na floresta», «Abalo (nã t’abiques)», «Murmúrio do vento», «Guerras de D. João» sobre um tradicional da Madeira, «O Nuno está todo Fu Doido», e uma improvisação colectiva em encore: a irreverência dos nomes dos temas teve um correspondente na execução.
Música estimulante, construída sobre contrastes – eléctrico X acústico (guitarra/ pedais X saxofones), estruturas rítmicas instáveis (centradas na bateria ou na guitarra), improvisação a questionar a pauta, um quarteto de inquietos improvisadores - do gestualismo dramático da bateria de Diogo Alexandre à proficiência dos saxofones, ao sobressalto dos pedais da guitarra; rematando com um bombom bem humorado e ritmado para os impacientes. O quarteto regressaria para um encore sob a forma (sem forma?) de uma improvisação sem rede (sem composição).  
Um único senão: os dois saxofones estavam a utilizar um único microfone, o que embrulhou um pouco o som para o público.

Francisco Lopes Plays Pat Metheny
A música de Pat Metheny gerou uma infinita descendência, derivada em grande medida do seu virtuosismo na guitarra, e não apenas no Jazz. Francisco Lopes é um desses discípulos. Música bem executada, sem novidade, mas muito pouco Jazz também. Lopes toca colado à pauta, sem improvisar e sem mais pretensões, quase sempre a solo (ocasionalmente com bateria, contrabaixo e voz), excedendo-se no tempo (do concerto). Diria que Francisco Lopes não queria fazer mais do que o que fez, e sabe fazer, mas foi pouco para estes ouvidos.

Luís Caldeira Quarteto
Devido à alteração dos voos para a Madeira, a terça-feira foi reprogramada com três concertos que se estenderam pela noite. O primeiro teve como protagonista o grupo do baterista Luís Caldeira, constituído por Francisco Nascimento no saxofone alto, o grego Yiannis Mitsios na guitarra e o nepalês Sulav Maharjan no contrabaixo. Os músicos conheceram-se na Holanda, onde estudam.
Quarenta e cinco minutos de música e uma mão cheia de composições, entre clássicos (entre os quais «Yes or No» de Wayne Shorter e «Soul Eyes» de Mal Waldron), e originais de Francisco Nascimento e Yiannis Mitsios (que poderiam muito bem passar por standards), bem executados, com primor e convicção, revelando como, apesar da juventude, eles já estão preparados. Diria que lhes faltaram os erros, porque é nos erros, e como eles os enfrentam, que a maturidade dos músicos transparece. Proficiente Luís Caldeira, voluptuoso – atenção a este jovem saxofonista! – Francisco Nascimento, subtil Yiannis Mitsios e impulsivo (a lembrar a escola japonesa de contrabaixistas) Sulav Maharjan – um quarteto que claramente se conhece bem, na forma como dialogam e se antecipam.

Madalena Caldeira 4tet
Cantora de standards assumida, Madalena Caldeira fez um concerto agradável, embora se tenha prolongado na apresentação, numa (já) noite que se adivinhava comprida. Treinada a cantar para um público pouco exigente, ela esquivou-se a um repertório mais complexo, preferindo os clássicos da Broadway ou mesmo modelando os standards do Jazz, revelando ainda assim capacidades vocais incomuns, com amplitude, e uma dicção e alegria envolventes. «Let’s Face the Music and Dance», o clássico de Fats Waller «Jiterbug Walz» legendado, «Isn’t it Romantic», «The Trolley Song», «Nobody Else But Me», e um original de Mateus Saldanha, «Hazel Eyes Poet», creio. Não faltaram os exercícios de scat, sem erros, mas também eles sem qualquer ambição de novidade. Como disse, agradável e despretensioso.

Rafael Andrade Electric Miles
Reprogramado para terça feira, o Electric Miles de Rafael Andrade começou já tarde, mas ainda assim com bastante público.
A música de Miles Davis é muito popular, e em especial o seu período eléctrico, mas ainda assim ele não é muito tocado; e este concerto gerou alguma expectativa. Sem que tenha tocado algum dos temas dos dois discos icónicos – «In a Silent Way» e «Bitches Brew», o trompetista optou por introduzir elementos de várias das composições, utilizados como argumentos, ou apontamentos, em composições da sua lavra. Também aqui sem novidade, mas muito entusiasmo e eficácia, música executada por um octeto que embora de ocasião era composto de competentes instrumentistas: trompete e saxofone, duas guitarras, teclados, baixo eléctrico, bateria e voz; a música de (deste) Miles é (foi) envolvente, e o público não cedeu até depois das dez e meia da noite. «Rafa» no trompete e fliscórnio – e uma gracinha no sousafone -, Ricardo Toscano a emular Gary Bartz, um secção rítmica luxuriante: Luís Lélis (a substituir Hugo Lobo que teve que regressar ao continente) nas teclas (Chick Corea) e  André Santos e Mateus Saldanha nas guitarras, Ricardo Dias no baixo eléctrico, Francisco Gomes na bateria e a voz de Madalena Caldeira a evocar Flora Purim.

PAPs - Curso Profissional de Instrumentista de Jazz do CEPAM
Um bom encerramento dos concertos de fins de tarde no Jardim Municipal. Mas o local ainda seria o palco, na quarta feira, para as apresentações dos jovens finalistas do Curso Profissional de Instrumentista de Jazz do CEPAM: Beatriz Dória, Emanuel Inácio, Vítor Fernandes e  Afonso Teles; a confirmar, uma vez mais, o elevado nível dos estudantes (e do Conservatório).

Emmet Cohen Trio com Ricardo Toscano
E na quinta-feira o festival mudou-se para o Parque de Sta Catarina. A programação nobre iniciou-se com o trio de Emmet Cohen, acrescido do saxofone de Ricardo Toscano. Cohen é um pianista norte-americano que se tornou conhecido no período da pandemia por ter aberto a sala ao mundo com concertos semanais; e pela sua casa passaram durante dois anos alguns dos mais relevantes músicos de Jazz da actualidade. Como resultado (dessa exposição) ele foi votado pelos leitores da Down Beat um dos mais importantes pianistas de Jazz vivos. O prémio será excessivo, mas Emmet Cohen foi capaz de demonstrar em palco o porquê da sua popularidade. Num registo absolutamente clássico, com a dose de peso nos dedos certa, ele nunca saiu fora de pé, entre Charlie Parker e Thelonious Monk, alguns originais e uma espreitadela aos musicais da Broadway, ele fez aquilo que o público queria, e bem; e o mais extraordinário do concerto foi a forma como Ricardo Toscano, que entrou logo no segundo tema, se entrosou no grupo, como se dele tivesse feito parte sempre. E diria até que, se algo haverá a dizer, é que Toscano elevou o nível da música! Em boa verdade isso não nos surpreende: o Jazz corre-lhe nas veias, e este repertório e esta abordagem são, nele, naturais.
Um bom arranque para os concertos do Jardim de S. Catarina, muito aplaudido, e o quarteto ainda regressou para um encore.

SuperBlue: Kurt Elling; Charlie Hunter
Esta associação de Kurt Elling com Charlie Hunter já tem três anos, e o sucesso teve consequência em novo disco de 2023 – «Superblue - The Iridescent Spree». Os dois são músicos muito diferentes em tudo – o cantor tem uma longa história na exploração do American Song Book e Hunter é um virtuoso guitarrista da área do funky-blues-fusão. «The Iridescent Spree» acrescenta um sólido naipe de sopros ao primeiro encontro de 2021, e foi esse septeto que tocou no Funchal.
A SuperBlue Band é um verdadeira trituradora, poderosa, treinada naquela fórmula funky-blues, com bons solistas, e foi capaz de mais que secundar a voz, integrando-a (ou será que Elling integrou a banda?).
(Como curiosidade, o grupo não possui baixo, falta que compensa com as teclas ou a guitarra personalizada de Hunter. O ecran por detrás da banda permitiu observar a guitarra personalizada com os trastes dispostos em leque. Embora o guitarrista toque normalmente uma guitarra de oito cordas – ou por vezes sete -, com as três cordas superiores reservadas às linhas de baixo, ele apresentou-se no Funchal com uma guitarra híbrida de seis cordas.)
Longe da mais pura emoção que comunicou em concertos a que lhe assisti no Estoril e em Angra do Heroísmo, ele regressou ao Funchal (depois de um excelente concerto em 2015) como vencedor, numa fórmula que se lhe diria alheia. Mas ele é um verdadeiro animal de palco, os seus recursos vocais são inesgotáveis, e ele revelou-se tão à-vontade naquele repertório e ambiente, como em outros.
O grupo abriu com um suasivo funky «Sassy» (phrasing's just like a saxophone), rematado com um exuberante scat (e ele fez mais scat neste concerto do que em todos os outros que já lhe ouvi), prosseguindo com «Naughty Number Nine», o espiritual «He's Got the Whole World in His Hands», ou uma composição de Carla Bley, «Endless Lawn», com letra de Elling.
A voz grave de Kurt Elling esteve sempre em evidência, muito físico e envolvente em todos os registos, brincando com as palavras ou dobrando os instrumentos num scat muito próprio, não apenas onomatopaico, mas introduzindo pequenas frases e improvisando (em frases não decoradas); e ele é, verdadeiramente, arrebatador: um cantor ímpar.
A lua nascia no mar, complementado o espectáculo - despretensioso, feito para o público, mas muito conseguido.  

Sexteto Bernardo Moreira Entre Paredes
A noite de sexta feira começou com o Sexteto de Bernardo Moreira, que foi apresentar o disco que já rola na estrada há dois anos: «Entre Paredes, a música de Carlos Paredes» .
Para além de alguns temas de Paredes - «Mudar de vida», «Canto de amor», «Verdes anos», «Serenata no Tejo» e «António marinheiro», o grupo tocou ainda «A morte saiu à rua», composição de José Afonso, e um original de Ricardo Dias - «Navio triste».
A música de Carlos Paredes é sempre muito melódica (e essa – a melodia - é a propensão natural do instrumento de Paredes, a guitarra portuguesa – e ela é causa e efeito), e a música do sexteto persegue essa melodia, que é também nostalgia e tristeza (ai o fado que nos persegue!), e esse é o único óbice àquela música que eu tenho a apontar; mas será necessário dizer que não é uma crítica, porque resulta do meu gosto pessoal, que é por norma avesso a tristezas (que para tristezas já nos sobram as extorsões da nossa economia liberal, dos bancos ou dos supermercados), e a música de Carlos Paredes é de uma riqueza incomensurável, e afinal muito bonita.
E os meus comentários serão até espúrios e Bernardo Moreira foi capaz em palco de se revelar assertivo no tratamento Jazz da música de Paredes, com arranjos muito inteligentes e uma direcção sem mácula. Música rigorosa, sem margem para exibicionismos estéreis, com solos pertinentes e nos momentos certos – e mesmo dispondo de um grupo de notáveis instrumentistas. Mas, nos sítios certos, Tomás Marques, João Moreira, Mário Delgado, e mesmo Bernardo Moreira, foram convincentes, e assinalaria a segurança e pertinência nos detalhes da bateria de Joel Silva. O piano foi excessivamente melodioso para os meus ouvidos, mas, uma vez mais, o problema será meu, pois que ele se adequa na perfeição à música de Carlos Paredes (como o demonstrou em «Navio triste»).
Música luxuriante nos detalhes, fluente, solidamente construída e experimentada; o veterano Bernardo Moreira construiu um dos momentos mais bonitos do festival.

Samara Joy
E enfim chegou o momento – para o público – mais aguardado do festival.
Já tudo se disse sobre os dotes de Samara Joy, da sua amplitude vocal e dos seus agudos impossíveis, e da sua jovialidade. Apesar da juventude – apenas 23 anos – e uma história curta no Jazz (ela que confessou apenas ter tido o primeiro contacto como Jazz na escola), ela arrebatou já todos os prémios possíveis, do público e da indústria, naquele género do Jazz vocal.
Com um registo absolutamente clássico, ela é uma comunicadora nata, conseguindo com facilidade agarrar um público ávido de boas canções; e foi com «Chega de Saudade – No More Blues» - Jobim – Vinícius de Moraes, em português e inglês, que Samara Joy iniciou o espectáculo. Seguiram-se-lhe o celebrado «Stardust», que o público reconhece da versão de Nat King Cole, um «Worry Later» de Thelonious Monk com um arranque a cappella numa piscadela de olho aos aficionados do Jazz, e de novo Monk em «Round Midnight», um – creio que – «Mr. Gentleman» numa evocação de Betty Carter, o recorrente nos seus concertos «Nostalgia» e a sua emulação do solo de trompete de Fats Navarro, «Guess Who I Saw Today» sobre a versão de Nancy Wilson, colado a «Lately» de Stevie Wonder, «Linger Awhile», tema e título do último álbum, «Reencarnation of a Love Bird» de Charles Mingus com letra dela, e um blues. E uma (dispensável) evocação de Amália Rodrigues no encore.
Versatilidade, é o mínimo que poderemos dizer de um repertório tão abrangente, numa forma única de se apoderar das canções como se lhe pertencessem, agarrando o público, como só uma grande cantora pode. Irrepreensível a banda (de Jazz, com um pianista stride sólido), com espaço para os solistas, servindo a voz com naturalidade. E diria que Samara Joy não vai mais longe porque não quer, e porque se mantém na música de entretenimento (mas não era Duke Ellington que se dizia um entertainer?)

Perico Sambeat com Orquestra de Jazz do Funchal
Com apenas três dias de ensaio e conhecendo a exigência da música de Perico Sambeat (e com os rumores de atribulações nesses ensaios), foi com alguma apreensão que me sentei para assistir ao primeiro concerto da última noite do festival. Mas a apreensão durou apenas uns segundos, quando a orquestra atacou «De camino», uma espécie de tango flamenco do saxofonista.
A verdade é que, mesmo se nos últimos anos tem sido patente uma enorme evolução no Jazz madeirense, os seus músicos sofrem inevitavelmente dos problemas associados à insularidade. Como noutras músicas, mas muito em especial no Jazz – que é uma forma musical primordialmente colectiva -, a troca de experiências é fundamental. Não há segredos nisto: tocar, tocar, tocar, e tocar com outros músicos é uma necessidade básica; e imagino que as «atribulações» de Sambeat (e da orquestra), tenham tido origem aqui: nessa insularidade; o que de certa forma se revelou na (quase sempre) recorrência aos mesmos solistas ao longo do concerto. Os veteranos Francisco Andrade, Alexandre Andrade e Moisés Fernandes, e Perico Sambeat, fizeram quase sempre as despesas dos solos, mas vale a pena dizer que a banda soou sempre bem, com um bom punch, o que foi manifesto em «Este tanbién», de inspiração cubana. Será verdade que os «rumores» me fizeram estar mais atento aos detalhes, mas ao longo do concerto foi evidente o notável trabalho de Perico Sambeat (e da orquestra) e, sem condescendência, eles realizaram um concerto muito forte e entusiasmado (e apesar das minhas observações).
Notável esteve a secção rítmica, com um baterista muito jovem, Francisco Coelho – um genuíno baterista de orquestra, com uma acentuação forte e segura nos pratos -, e a igualmente jovem (estudante da escola do Hot Club) Juliana Mendonça, a merecer referência.
Repertório quase integramente escrito para orquestra por Perico Sambeat, creio que com apenas uma excepção - «Muñequita Linda», um bolero de Nat King Cole. Mas outros foram «Epicuro» ou «La sombra de Ciro», cobrindo uma diversidade de géneros e formas, entre o óbvio flamenco e o funky ou o mais tradicional Jazz, onde a orquestra se mostrou sempre fluente; mesmo nos arranjos mais intrincados. E enfim, a questionar a minha observação quanto à repetência dos solistas, o director convocou para os últimos temas vários instrumentistas (de que infelizmente não retive alguns nomes), trombones, saxofones, piano, guitarra, contrabaixo, bateria, percussão, e ele mesmo em saxofones alto e flauta – e ele é, para além do director, compositor e arranjador que o Funchal conheceu, um excelente solista.  
E fiquei com a sensação de que mais três dias de ensaio e este seria o grande concerto do festival.

Terri Lyne Carrington’s New Standards
Se o concerto de Terri Lyne Carrington foi sem dúvida um excelente remate para o Funchal Jazz 2023, ele foi também o mais irregular dos concertos do festival. Irregular em tudo, no alinhamento dos temas, nos géneros abordados e mesmo na formação. Ela é uma baterista explosiva e hábil, e demonstrou-o logo no primeiro tema - «Round», um original da pianista Marylin Crispell (que constituiu aliás, para mim, o momento mais alto do concerto, e creio que o deveria ter deixado para o fim). Intrincado e surpreendente, ele teve o mérito de expor desde logo os predicados de Kris Davis, uma pianista com pouca projecção entre nós, e apesar da assídua presença na editora Clean Feed. Mas ela é uma pianista singular, muito incisiva e proficiente, e foi sempre um dos eixos do sexteto.
O concerto mudou de rumo com a entrada de Michael Mayo, logo no segundo tema, emocionante na interpretação de um clássico da eterna Abbey Lincoln, «Throw it Away», com a banda em registo mais soul, que é afinal o registo de Mayo. Guitarra em evidência num som cheio.
Sucedeu-se «Circling», de Gretchen Parlato, com Kris Davis a mudar para o piano eléctrico, e a banda toda em fórmula pop; e outro tema de que não retive o nome, quase pop, também, com Mayo em falsete, e um inspirado solo do contrabaixo de Mats Sandahl.
E os temas seguintes confirmaram afinal um Michael Mayo de mau gosto, numa pop-soul de alguma vulgaridade, investindo por vezes num xaroposo scat, em desacerto com a banda que não claudicou, mesmo se se notando o desequilíbrio, entre o trompete nem sempre pertinaz de Milena Casado Fauquet, e as apenas ocasionais intervenções do guitarrista Matthew Stevens.
A diversidade prosseguiu com um tema mais swingado e uma composição de Kris Davis - «Imperial Song Flower» - que me pareceu inspirada no «Poinciana» de Ahamad Jamal, «Two Hearts» de Carla Bley, um funky milesiano retirado talvez de «In a Silent Way», e o «Inconditional Love» de Geri Allen em encore.
Diria que Terri Lyne Carrington procurou fazer um concerto concedendo para o público de um grande festival, e é pena; mas nesse desequilíbrio que ela mesmo concedeu, ela soube resolver da melhor forma. E, se mais não fosse, os momentos que os monstros dos seus instrumentos que Kris Davis e Terri Lyne Carrington são nos proporcionou, bastariam para um largo saldo positivo.

Workshops, Exposição de fotografia, jam sessions
A par dos concertos o festival aproveitou a oportunidade da presença dos músicos «de fora», Perico Sambeat, Emmet Cohen e Bernardo Moreira Sexteto, para oferecer aos alunos do Conservatório algumas concorridas workshops; mas também merece referência a exposição de fotografia de Márcia Lessa, com 32 excelentes fotos de concertos e festivais de Jazz de duas décadas, que apenas pecou por exígua.
E enfim, ao longo dos três últimos dias do festival as noites terminaram no Qasbah, onde se realizaram as jam sessions, e onde os músicos madeirenses, do continente e estrangeiros, e o público, se encontraram na celebração de uma música universal e do melhor da vida. 
E assim se faz um grande festival, e o Funchal Jazz há muito entrou para o patamar dos melhores festivais de Jazz nacionais.
  

( Leonel Santos esteve no Funchal Jazz a convite da Associação de Promoção da Madeira - APM - #visitmadeira )

(Todas as fotos por Márcia Lessa)

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Antecipação (28 de Junho de 2023)

Funchal Jazz, de 1 a 8 de Julho.
As pièces de résistance do festival estão guardadas para o fim de semana de 6 a 8, com Emmet Cohen, Kurt Elling e Charlie Hunter, Bernardo Moreira, a «Músico Revelação do Ano» da crítica: Samara Joy, Perico Sambeat e Terri Lyne Carrington;

mas antes disso o festival ocupa os fins de tarde do Jardim Municipal do Funchal com programação local ou de grupos dirigidos com músicos madeirenses,
onde cantará a madeirense Laura Silva no sábado 1;
seguindo-se no dia seguinte (dom, 2) a evocação do Miles eléctrico pelo octeto de Rafael Andrade;
e expectativa alta para o novo projecto de André Santos (quarteto com dois saxofones, guitarra e bateria), «Vereda», na segunda 3;
e ainda nessa tarde, já ao crepúsculo toca o  Madalena Caldeira Quarteto;
e na terça 4, dois grupos também: o quarteto de Francisco Lopes que irá tocar a música de Pat Metheny;
seguindo-se-lhe o Luís Caldeira Group.
Enfim, quarta 5 é a vez dos jovens estudantes do Curso Profissional de Instrumentista de Jazz do Conservatório da Madeira mostrarem o que valem, ainda no Jardim Municipal;

e na quinta (6) o festival passa para o Parque de St. Catarina, sempre às 21.30.
A Emmet Cohen, que generosamente, ao longo dos dois anos da pandemia, nos abriu as portas da sua sala, cabem as honras de abertura da programação internacional do Funchal Jazz. Virtuoso, num registo muito clássico, tem os aplausos da plateia dos dois mil ouvintes, à frente do seu trio, abrilhantado (como se costumava dizer) pelo convidado muito especial Ricardo Toscano ao saxofone.
Segue-se outro vencedor: o inqualificável Kurt Elling, que já conquistou o público do Funchal em 2015. Kurt Elling é, apenas, a maior voz masculina do Jazz contemporâneo, emocionante e arrrebatador, de recursos vocais imensos. Num registo mais funky do que lhe veio ao Funchal, ele deverá apresentar, com o singular guitarrista Charlie Hunter, o novíssimo disco SuperBlue: The Iridescent Spree, de 2023 à frente de um septeto com três sopros.
Sexta 7 abre com uma banda portuguesa, o Sexteto Bernardo Moreira, que irá tocar a homenagem a Carlos Paredes, de nome Entre Paredes, disco de 2021. Sexteto de ilustres, uma mais que condigna representação nacional.
E a noite de sexta termina com a actuação da jovem Samara Joy (Prémio Revelação 2022 da Crítica nacional reunida em JazzLogical). Generosa e genuína, a alegria e os enormes dotes vocais de Samara Joy irão contagiar o público do Funchal Jazz.
O último dia do festival abre com um projecto arriscado, que reúne o saxofonista valenciano Perico Sambeat e a Orquestra de Jazz do Funchal. Risco calculado, diríamos, porque Sambeat é um músico com uma longa carreira internacional à frente ou ao lado de todos os grandes do Jazz internacional, e também como professor, e o público de Jazz português conhece-o bem. Mas também, do lado da OJF, na direcção, estão dois músicos com provas dadas, Francisco Andrade e Alexandre Andrade. As composições, os arranjos e o saxofone leader, estão a cargo de Perico Sambeat. 
Com uma carreira de quarenta anos, a baterista Terri Lyne Carrington está aí para desmentir todos os ignorantes que afirmam que as mulheres não sabem tocar Jazz. Uma dúzia de discos como leader e muitas dezenas como sidewoman, Terri Line Carrington é uma das mais requisitadas bateristas da actualidade, e por mérito próprio. Terri Lyne Carrington  irá apresentar o disco de 2022 New Standards e, integradas no sexteto que tocará no Funchal, estarão duas outras mulheres, entre as quais a singular pianista Kris Davis.
Concerto de encerramento do Funchal Jazz prometedor, recheado com a nata do Jazz interncional, ecléctico e equilibrado.   

E enfim, para além dos concertos de dixieland que irão animar as ruas do Funchal ao longo dos dias do festival, resta o convite para as jam sessions de quinta a sábado no Qasbah, onde se sabe que começam por volta da meia noite, mas nunca se sabe quando acabam.

1 de Julho, Jardim Municipal, 19.00 - Laura Silva
2 de Julho, Jardim Municipal, 19.00 - Rafael Andrade «Electric Miles»
3 de Julho, Jardim Municipal, 19.00 - André Santos «Vereda»
3 de Julho, Jardim Municipal, 20.30 - Madalena Caldeira Quarteto
4 de Julho, Jardim Municipal, 19.00 - Francisco Lopes «Plays Pat Metheny»
4 de Julho, Jardim Municipal, 20.30 - Luís Caldeira Group
5 de Julho, Jardim Municipal, 19.00 - PAPs do Curso Profissional de Instrumentista de Jazz do CEPAM
6 de Julho, Parque de St. Catarina, 21.30 - Emmet Cohen; SuperBlue: Kurt Elling; Charlie Hunter            
7 de Julho, Parque de St. Catarina, 21.30 - Sexteto Bernardo Moreira Entre Paredes; Samara Joy
8 de Julho, Parque de St. Catarina, 21.30 - Perico Sambeat; Orquestra de Jazz do Funchal; Terri Lyne Carrington’s New Standards

Leonel Santos

Sáb 1 Julho Funchal Auditório do Jardim Municipal 19.00 Laura Silva Laura Silva (voz), Francisco Andrade (st, ss), Décio Abreu (g), Filipe Gouveia (ctb), Caio Oliveira (bat)
Yellow Bus 17.00 Funchal Jass Rhythm Kings André Almada (cornetim), Ricardo Sousa (trb), João Gonçalves (cl), Matias Pires (bj), João Alho (tu), Lucas Silva (bat)
Dom 2 Funchal Auditório do Jardim Municipal 19.00 Rafael Andrade
«Electric Miles»
Rafael Andrade (t, flis), Ricardo Toscano (sa), Hugo Lobo (tec), André Santos (g), Mateus Saldanha (g), Ricardo Dias (b-el), Francisco Gomes (bat), Madalena Caldeira (voz)
           
Seg 3 Funchal Ruas do Funchal 17.00 Funchal Jass Rhythm Kings André Almada (cornetim), Ricardo Sousa (trb), João Gonçalves (cl), Matias Pires (bj), João Alho (tu), Lucas Silva (bat)
Auditório do Jardim Municipal 19.00 André Santos
«Vereda»
André Santos (g), José Soares (sa), Francisco Andrade (st), Diogo Alexandre (bat)
20.30 Madalena Caldeira Quarteto Madalena Caldeira (voz), Mateus Saldanha (g), Nelson Cascais (ctb), Francisco Gomes (bat)
Ter 4 Funchal Auditório do Jardim Municipal 19.00 Francisco Lopes
Plays Pat Metheny
Francisco Lopes (g), Guilherme Gomes (voz, g), Emanuel Inácio (ctb), Luís Caldeira (bat)
20.30 Luís Caldeira Group Francisco Nascimento (sa), Yiannis Mitsios (g), Sulav Maharjan (ctb), Luís Caldeira (bat)

Qua 5

Funchal Auditório do Jardim Municipal 19.00 PAPs do Curso Profissional de Instrumentista de Jazz do CEPAM  
Qui 6 Funchal Yellow Bus 17.00 Funchal Jass Rhythm Kings André Almada (cornetim), Ricardo Sousa (trb), João Gonçalves (cl), Matias Pires (bj), João Alho (tu), Lucas Silva (bat)
Parque de St. Catarina 21.30 Emmet Cohen Emmet Cohen (p), Philip Norris (ctb), Kyle Poole (bat) + Ricardo Toscano (sa)
SuperBlue: Kurt Elling; Charlie Hunter Kurt Elling (voz), Charlie Hunter (g), DJ Harrison (tec), Corey Fonville (bat), Marcus Tenney (t), Chris Ott (trb), Dan White (st)
Qasbah 24.00 jam session Ricardo Toscano (sa), Nuno Ferreira (g), Nelson Cascais (ctb), Luís Candeias (bat)
Sex 7 Funchal Parque de St. Catarina 21.30 Sexteto Bernardo Moreira Entre Paredes João Moreira (t, flis), Tomás Marques (sa), Ricardo J Dias (p), Mário Delgado (g), Bernardo Moreira (ctb), Joel Silva (bat)
Samara Joy Samara Joy (voz), Luther Allison (p), Mikey Migliore (ctb), Evan Sherman (bat)
Qasbah 24.00 jam session Ricardo Toscano (sa), Nuno Ferreira (g), Nelson Cascais (ctb), Luís Candeias (bat)
Sáb 8 Funchal Parque de St. Catarina 21.30 Perico Sambeat; Orquestra de Jazz do Funchal Perico Sambeat (sa, c, arranjos), Francisco Andrade (dir), Alexandre Andrade (dir)
Terri Lyne Carrington’s New Standards Milena Casado Fauquet (t, flis), Kris Davis (p), Matthew Stevens (g), Mats Sandahl (ctb), Terri Lyne Carrington (bat), Michael Mayo (voz)
Qasbah 24.00 jam session Ricardo Toscano (sa), Nuno Ferreira (g), Nelson Cascais (ctb), Luís Candeias (bat)
           

 

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Programador/ Director Artístico PAULO BARBOSA
Iniciativa CÂMARA MUNICIPAL DO FUNCHAL