João na terra do jaze, José Duarte 1981

 

Editado em 1981 pel’A Regra do Jogo, João na Terra do Jaze reúne grande parte das largas dezenas de textos de José Duarte dispersos pela imprensa, ou lidos na rádio, entre 1958 e 1979.

Falecido no ano passado, José Duarte foi o maior divulgador de Jazz em Portugal, mesmo se a paternidade do Jazz tenha pertencido a Luís Villas-Boas. Mas os seus dotes de comunicação, fizeram dele uma figura cimeira na divulgação acima de todos os outros.

O primeiro texto anuncia o programa «Jazz, Esse Desconhecido», na Rádio Universidade, tinha vinte anos; idade em que se junta a Raul Calado na fundação do Clube Universitário de Jazz de Lisboa [CUJ] de curta vida [1958-1961]. O CUJ é referido por diversas vezes e um dos textos, mesmo, fala do clube. (O CUJ assumia-se como um clube alternativo ao Hot Club de Portugal [HCP], bastante mais politizado, e, apesar de ter funcionado apenas três anos, reuniu muito rapidamente largas centenas de associados; contrastando com o Hot Club, que era um clube relativamente fechado e dedicado à divulgação do Jazz “como forma musical”.)

Em virtude da sua profissão na TAP, José Duarte viaja com frequência para Paris, Londres ou Nova Iorque, período em que tomou contacto com a fervilhante viragem do Jazz e as novas sonoridades dos anos 60, e também os movimentos que associavam a música à política. Nesse período ele conhece inúmeros músicos e divulgadores, que ajudaram a enformar a sua concepção de Jazz, que perpassa nos seus escritos. Num texto de 1969, onde reflete sobre a relação entre o produtor e o receptor; o músico e o público, o Jazz tocado por negros e o público branco; ele conclui: «… a melhor aproximação do jazz é a que completa a audição puramente musical como conhecimento de toda a problemática e ambiente que lhe está na origem» (p.67).

 Alguns dos primeiros textos do livro registam esse contacto estrangeiro, em reportagens sobre festivais, concertos e jam sessions, e também exposições, conferências e debates. Num evento nacional, que reuniu a elite jazzística nacional, e que incluíram Villas-Boas, Raul Calado ou Manuel Jorge Veloso no Instituto Superior Técnico, regista também o concerto do quarteto do HCP (com Manuel Jorge Veloso, Bernardo Moreira, Justiniano Canelhas e Vasco Henriques).

Noutros textos, ele debruça-se sobre alguma música pop, por vezes em recensões, sobre a popular banda de fusão Bloob, Sweat and Tears, a cantora Melanie Safka, os protagonistas da «Tropicália» (Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão, e outros) e a «música de intervenção» em voga na altura (e que antecipava o 25 de Abril: Francisco Fanhais, Luís Cília, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire, e também José Afonso e José Mário Branco, de quem se tornou amigo e que prefacia o livro), Johnny Cash, Joan Baez (num texto «As flores não vencem canhões»), acometendo por vezes ironicamente sobre o nacional cançonetismo ou a ignorância que levava um jornalista a traduzir «Jack Kerouac and the Beat Generation» por «Jack Kerouac e a Geração Batida».

Em «Apolo XIII», de 1970, num texto peculiar, José Duarte relata a viagem a Houston por ocasião do lançamento da Apolo XIII, numa reportagem leiga e surpreendente, até pelo convite da RTP – Zip-Zip. (O Zip-Zip, Maio a Dezembro de 1969, com apresentação de Carlos Cruz, Fialho Gouveia e Raul Solnado, foi um programa de televisão semanal, onde Zé Duarte colaborava, e que foi uma referência – uma verdadeira pedrada no charco - na pasmaceira cultural que o país vivia. Ao Zip-Zip sucedeu-se o programa de rádio Tempo Zip, emitido diariamente na Rádio Ranascença das 0.00 e as 3.00, entre 1970 e 1972, e tinha uma rubrica semanal de Jazz ao sábado.)

Noutra ocasião, o Tempo Zip levou José Duarte a Nova Iorque, onde assistiu a um concerto de Dewey Redman no Village Vanguard, e um outro de Sun Ra – surreal, bizarro, refinada loucura!, assim o classificou - num «cais sórdido» onde, ao lado, estava estacionado o navio escola Sagres. 

Ao longo do livro, José Duarte fala de inúmeros músicos, concertos e discos, onde é óbvia a sua paixão e conhecimento do Jazz, com informação e juízos sobre músicos e correntes estilísticas, opinando por vezes de forma jocosa ou mesmo acintosa, como era o seu estilo.

Acintoso: em «Hot, um clube morno», de 1970, ele acusa a inércia do Hot Club: «Um clube de “jazz” inane, ineficaz fútil, inerte, é sempre uma situação triste…» e «…uma associação sectária, introvertida, prosélita, em coma perpétua, a “dolce vita” do jazz, sem discos, sem livros, sem revistas, sem boletim, sem sessões fonográficas, sem instrumentos, sem escola, sem música viva… com admissão reservada… Hot, um clube morno».  

Esta acrimónia estendia-se a Villas-Boas, mesmo se lhe reconhecesse o mérito da paternidade do Jazz em Portugal e da fundação do Hot Club. Mas acusava-o de aburguesado e, nas vésperas do Cascais Jazz de 1971, denunciava-o como apoiado pelo grande capital, com um significado (o festival) fortemente ilusório, desligado de qualquer significado colectivo.

Mas o festival acabaria por o contradizer: em «Jamais esqueceremos», logo em Dezembro, ele reflectia sobre o ambiente impressionante e a moldura humana compacta do festival e do que a música de Miles Davis e Ornette Coleman o tinham perturbado: «cheguei a pensar na ironia de Cascais ser, naquele momento, o centro mundial do jazz, e de nos subterrâneos dum pavilhão de desportos se cruzarem Miles, Ornette, Dexter e outros. Se era sonho também não fazia mal.». Mas ao Cascais Jazz ele voltaria anos depois, questionando a programação, o público ou a filosofia.

Acrimónia também, sobre Jorge Lima Barreto e o Anar Jazz Group, por exemplo, sobre que escreveria a propósito de um concerto no 1.º Festival de Jaz do Porto de 1971: «O texto assinado pelo Anar Jazz Group (“Conceptual Jazz”) é um grande susto; aquilo, meus senhores, é que é falar bem! Um aluno da Sorbonne ficaria boquiaberto, um negro de Watts ficaria parvo! Só dois excertos:
“… o sujeito consumidor mitifica uma mágica primitiva…”
“… o Anar Jazz Group pretende introduzir na música negra-americana o que se chama de Conceptual Jazz…”
À entrada fiquei pois à rasca. E logo eu que fora convidado a apresentar o grupo signatário do documento!» e
«Em relação ao mentor Barreto, é inegável o fascínio do arrojo das suas opiniões extremistas; é curioso o seu edifício cultural, construído em ritmo acelerado, pré-fabricado, de acordo com as fachadas da moda; é oportuno o seu pôr em causa tudo e todos, o seu abalar de mitos; é perigoso, se actua como possível confucionista ou contestador gratuito… A música de Barreto é teoricamente rica, criativamente vazia.».

Alguns textos curtos (José Duarte nunca refere a procedência dos artigos, apenas a data) deverão ser provavelmente os textos do programa «5 minutos de jazz» (1966-1975 na Rádio Renascença, 1983-1993 na Rádio Comercial, 1993-2023 na Antena 1), e noutros programas de rádio, sendo a maioria textos publicados em imprensa. Do primeiro «5 minutos de jazz», logo a seguir à revolução dos cravos, a ilustrar «Song for Che» de Charlie Haden: «Esta é a primeira emissão de uma vida nova, uma vida na qual me integro com entusiasmo, livre da repressão, da censura, da ditadura fascista.» e «Que este pequeno momento de jazz se insira diariamente na nossa vivência revolucionária.». 

Alguns outros ainda, são entrevistas: Jorge Lima Barreto, Rão Kyao, Carlos Zíngaro, o amigo Steve Potts, Noah Howard, Gordon Beck, entre outros pequenos extractos de conversas; e José Duarte não se esquivava à opinião.

Enfim, um dos últimos textos do livro, «As mulheres do Cascais», dava conta das mulheres que tinham actuado, quase todas cantoras, e das que faltavam vir a Cascais: Ella Fitzgerald, Anita Moore, Sarah Vaughan, Marva Josie, Karin Krog, Betty Carter, Odetta e Nancy Wilson, entre outras presenças menores, e Carla Bley, Toshiko Akiyoshi, Joanne Brackeen, Carmen McRae, Sheila Jordan, Helen Merril e Anita O’Day entre as faltosas.

 

Ao longo do livro é patente essa paixão e uma postura opinativa e interventiva, num estilo acintoso, com frequência, que acompanhava a sua personalidade bastante egocêntrica, que nele se reflecte, e que lhe traria alguns dissabores. Os textos pós 25 de Abril de 1974 denotam uma postura mais politizada, agora livre da censura, mas reflectem sempre também o seu enorme amor pelo Jazz. Mas ele foi o mais importante divulgador de Jazz nacional, e o livro torna-o evidente. Este foi o primeiro livro publicado por José Duarte e a outros voltaremos.       

O título do livro, «João na terra do jaze», é o nome de um poema dedicado ao filho João, falecido em 1971, nas vésperas do primeiro Cascais Jazz.