Carta ao jornalista Mário Crespo
Caro Senhor Mário
Crespo.
Como a muita gente neste país e ao senhor também ao que parece,
o «caso da Quinta da Fonte» perturbou-me. Tenho lido
comentários
dos vários quadrantes sobre o assunto, alguns deles de bastante mau
gosto escritos por pessoas a trabalhar afincadamente para ganhar
o reino dos céus. Pois embora não costume comprar o jornal
onde o senhor, escreve acontece-me lê-lo e, com alguma regularidade
também,
vejo-o na televisão. Desta vez recebi o seu miminho dirigido aos ciganos
via email e é sobre ele que gostaria de lhe escrever. Normalmente
costumo apreciar o seu trabalho como jornalista, mas já como comentador,
nem sempre… Ora no meu entender, desta vez o senhor «espalhou-se» mesmo
pelos piores motivos.
O texto que escreveu
sobre a Quinta da Fonte é realmente lamentável.
O senhor começa por transcrever o desespero de um homem – provavelmente
um cigano – por lhe terem destruído e assaltado a casa e levado
o plasma, o DVD e a aparelhagem e pouco depois o de um outro a quem teriam
roubado a TV e a playstation dos filhos. Este passa a ser o argumento para
a diatribe que logo a seguir arremete contra os «oportunismos políticos
que à custa destas bizarras benesses, compraram votos de Norte a Sul».
Pelo caminho vai espalhando piropos: «estes beneficiários de
tudo e mais alguma coisa», «grupo de marginais», «cabecilhas
de gangs de traficantes» …
O problema começa porque o senhor não sabe. O senhor não
faz ideia se aqueles jovens que viu na reportagem são criminosos,
marginais ou sequer beneficiários de alguma espécie de segurança
social, mas acusa-os. O senhor não faz ideia se eles compraram a TV
e a playstation com o dinheiro que ganharam no seu emprego ou a vender droga,
mas aponta o dedo! Ora isso é uma coisa muito feia.
O senhor considera que eles não têm direito a ter o plasma ou
a playstation. Se são pobres (e ademais ciganos) eles devem andar
sujos e rotos e não têm nada que ter a playstation, que é assim
que os pobres de Charles Dickens ou da Condessa de Ségur andam. Com
que direito pois é que os filhos dos ciganos jogam playstation ou
vêm televisão? Pobre e cigano não pode ter playstation
nem ver televisão…
«O país inteiro viu uma dezena de homens armados a fazer fogo na
via pública». Uma vez mais o senhor não faz ideia se eles
estavam a atacar ou simplesmente a defender-se. Eu também não,
mas creio que na tal sociedade ocidental que o senhor defende existe a presunção
da inocência…Dir-me-á que eles têm armas presumivelmente
ilegais e que são um perigo, o que pode ser verdade. Mas quem defenderá o
cigano se não forem eles próprios? Que polícia defenderá o
cigano atacado? E como o senhor sabe, num país onde há mais caçadores
que coelhos, são às centenas de milhar as caçadeiras por
aí espalhadas… De vez em quando disparam-se...
Claro que os ciganos são uma complicação. Desprezados e
hostilizados, eles recusam a integração. Orgulhosos, eles invocam
a diferença cultural para com algum oportunismo reivindicar assistência
social. A sua forma de viver é esquisita: têm hábitos culturais
diferentes, hábitos de higiene diferente, «tratam as mulheres como
inferiores», vestem-se de forma diferente e envolvem-se com frequência
em disputas e violentas. Ora isto provoca que seja difícil a convivência
com ciganos. Por outro lado as tentativas de integração esbarram
no receio de perda de valores e dos códigos de honra e tradições,
e por último acontece que nas últimas décadas, devido ao
desaparecimento das formas de subsistência tradicionais e ao cerco que
a sociedade moderna lhes move, muitos ciganos, em especial jovens, são
atirados para uma marginalidade criminosa e violenta.
Não vou sequer tentar resolver o problema dos ciganos ou sequer fazer
a sua defesa até porque muitos dos aspectos da sua cultura são
do meu ponto de vista indefensáveis, enquanto que noutros talvez
tenhamos alguma coisa a aprender com eles... Mas
não é disso
que
estamos a falar. Apenas gostava de lhe fazer notar alguns aspectos do problema.
O senhor está zangado pelo facto de a assistência social sustentar «estes
criminosos racistas» «neste país, tão cheio de dificuldades»,
mas olhe que os problemas do país não são realmente os ciganos...
Eu não o vejo reclamar dos reais problemas do país. Eu não
o vejo reclamar do Joe Berardo que só numa semana ganha mais em especulação
que o que o Estado gasta na Quinta da Fonte num ano inteiro. Ou um qualquer administrador
da Galp ou da EDP ou até o Dr. Vítor Constâncio! O senhor
não se importa que os Belmiros liquidem as empresas produtivas do país
para passar a comprar tudo não importa aonde desde que seja mais barato
para vender nos seus supermercados ao mesmo preço e ainda venham com toda
a sua arrogância dar recados ao governo na televisão. O senhor não
se importa com os milhões que o Dr. Paulo Portas gastou em nome do Estado
por uns submarinos de que ninguém precisa num negócio muito esquisito.
O senhor não se importa com os dinheiros que os Jaime Ramos desviam em
operações duvidosas ou os milhões que o Estado paga ou perdoa
aos clubes de futebol: o senhor está é preocupado com os trocos
que o Estado dá aos ciganos. Mas olhe que eles não são realmente
os responsáveis da subida do Euribor ou da crise, mas sim algumas pessoas
bem mais respeitáveis.
Eu creio que a sua crítica está desfocada. Em meu entender
talvez que ela devesse dirigir-se ao tipo de apoio e assistência social
que o Estado oferece aos ciganos e aos excluídos da sociedade e não
ao apoio em si. É que tudo o que o Estado faz é pegar neles
e juntá-los todos num bairro social junto com outros grupos étnicos
e fazer de conta que eles não existem. Porque foi isso que ele fez.
Ele ignorou até o facto de eles serem grupos étnicos de características
culturais bastante marcadas, que na «oposição» tendem
a acentuar as diferenças. Os confrontos de rua que o senhor viu decorrem
muito provavelmente daí.
O que o Estado fez foi pegar numas centenas de «ciganos e pretos» que
estavam a viver num local que precisava para fazer uma festa – a Expo
98 - e colocá-los todos juntos num bairro social, todos juntinhos.
Foram, ao que li, 800 famílias – vários milhares de indivíduos
- num bairro projectado para 500! Só podia mesmo dar no que deu.
Mas temo que estejamos apenas no início da catástrofe. A ONG
Médicos do Mundo que trabalha há mais de um ano na Quinta da
Fonte não foi surpreendida pela crise que estalou no bairro: «A
degradação actual do bairro, com casas vandalizadas, materiais
com pouca qualidade, infestações de ratos e baratas agravam
o problema, dificultando a identificação da população
com o espaço. Se não procuramos ocultar que as diferenças
culturais entre as comunidades são parte do problema, defendemos que
as dificuldades de relacionamento são agravadas pelas condições
precárias em que vivem, o que se torna evidente pelo facto de os conflitos
se verificarem, também, entre pessoas da mesma comunidade.»
Portugal podia aprender com os maus exemplos que aconteceram em Espanha ou
França em vez de lhes seguir as pisadas. Portugal podia tentar integrar
os ciganos, ensinar uma profissão aos jovens, oferecer-lhes algum
futuro. Mas tudo o que faz é colocá-los em guetos. O senhor
esquece, como o Estado, que eles são cidadãos e que o Estado
tem deveres para com eles, por que todos somos cidadãos. Claro que
desde há muito que vemos o Estado a desresponsabilizar-se dos seus
deveres para com os seus cidadãos, os ciganos e os outros. Cada vez
vemos mais o Estado a desinvestir na educação e na saúde
e a subsidiar e promover a gestão privada. A entregar a electricidade
e a gasolina, as estradas e as pontes e tudo o que dá dinheiro aos
privados. Cada vez mais vemos o Estado a reduzir os subsídios de desemprego
e os apoios sociais aos velhos e às crianças. Pelo contrário
vemo-lo cada vez mais a perseguir os cidadãos e a controlá-los.
O Estado exige muito mas dá cada vez menos. Mas nem vale a pena continuar:
o senhor sabe do que falo. O Estado tem deveres para com todos os cidadãos
e não os cumpre.
Repare, eu não estou a pedir mais para os ciganos que para todos os
cidadãos deste país. Simplesmente o Estado português
tem aqui um problema para resolver que são muitos jovens negros e
ciganos e amarelos e brancos e azuis às bolinhas desempregados e sem
futuro que se preparam para entrar no mundo da marginalidade se o Estado
não fizer aquilo que deve fazer. Podemos colocá-los em guetos
e fazer leis que os obrigam a ir para a escola até aos 18 anos para
parecer que somos um país civilizado e oferecer-lhes um Rendimento
Social de Inserção, que estaremos apenas a enfiar a cabeça
na areia. Podemos reclamar que eles só exigem e nada oferecem em troca,
o que até em boa parte pode ser verdade. Ou podemos perceber que temos
um problema em mãos que é preciso resolver e começar
já. Repare: eu nem tenho nenhuma fórmula mágica para
resolver este ou outro «problema». Apenas me parece que a sua crítica
está desfocada.
Não se iluda, se nada fizermos, e começa a ser tarde, nos próximos
tempos iremos assistir a um crescendo de violência e criminalidade
com origem entre os grupos sociais mais depauperados e segregados. Os sinais
estão aí.
O discurso populista e racistóide é o mais fácil e eficaz
(faz vender mais jornais). O que me chocou no seu texto foi acima de tudo
o facto de ter vindo de si. Ficcionamos que os jornalistas são pessoas
que pensam, mas por vezes enganamo-nos. No fundo eles (alguns) são
pessoas vulgares com pensamentos vulgares, mas com muito poder. O senhor
tem o poder da informação, mas usou-o da pior forma numa verborreia
racista. Vi há tempos um filme de um super-herói que trepava
pelas paredes que dizia: «grande poder traz grande responsabilidade».
O senhor não é um super-herói, pelos vistos, mas apenas
um observador distraído sem nada para dizer. Mas diz. Desta vez foi
bacorada. Lamentável.
O senhor não gosta de ciganos; está no seu direito (eu também não gosto de muita gente e tenho de conviver com ela...). Mas o senhor tomou alguns ciganos pelo todo e sem saber sequer o que realmente se passou, acusou. Ora isso não é lá muito ético. O senhor faz parte dos não sei quantos por cento dos portugueses que não gosta de ciganos, mas eu gostaria de lhe dizer e a esses portugueses que quem nunca comprou nos ciganos um polozito da Lacoste que atire a primeira pedra. E afinal reconheçamos lá que o verdadeiro roubo não é o dos ciganos que nos vendem pólos «contrafeitos» a 5 euros, mas quem no-los vende exactamente iguais por 50...
E não, não são eles os responsáveis pela crise.
Os meus cumprimentos,
Leonel Santos
Limpeza étnica (Texto de Mário Crespo) O homem, jovem, movimentava-se num desespero agitado entre um grupo de mulheres vestidas de negro que ululavam lamentos. "Perdi tudo!" "O que é que perdeu?" perguntou-lhe um repórter. "Entraram-me em casa, espatifaram tudo. Levaram o plasma, o DVD a aparelhagem..." Esta foi uma das esclarecedoras declarações dos autodesalojados da Quinta da Fonte. A imagem do absurdo em que a assistência social se tornou em Portugal fica clara quando é complementada com as informações do presidente da Câmara de Loures: uma elevadíssima percentagem da população do bairro recebe rendimento de inserção social e paga "quatro ou cinco euros de renda mensal" pelas habitações camarárias. Dias depois, noutra reportagem outro jovem adulto mostrava a sua casa vandalizada, apontando a sala de onde tinham levado a TV e os DVD. A seguir, transtornadíssimo, ia ao que tinha sido o quarto dos filhos dizendo que "até a TV e a playstation das crianças" lhe tinham roubado. Neste país, tão cheio de dificuldades para quem tem rendimentos declarados, dinheiro público não pode continuar a ser desviado para sustentar predadores profissionais dos fundos constituídos em boa fé para atender a situações excepcionais de carência. A culpa não é só de quem usufrui desses dinheiros. A principal responsabilidade destes desvios cai sobre os oportunismos políticos que à custa destas bizarras benesses, compraram votos de Norte a Sul. É inexplicável num país de economias domésticas esfrangalhadas por uma Euribor com freio nos dentes que há famílias que pagam "quatro ou cinco Euros de renda" à câmara de Loures e no fim do mês recebem o rendimento social de inserção que, se habilmente requerido por um grupo familiar de cinco ou seis pessoas, atinge quantias muito acima do ordenado mínimo. É inaceitável que estes beneficiários de tudo e mais alguma coisa ainda querem que os seus T2 e T3 a "quatro ou cinco euros mensais" lhes sejam dados em zonas "onde não haja pretos". Não é o sistema em Portugal que marginaliza comunidades. O sistema é que se tem vindo a alhear da realidade e da decência e agora é confrontado por elas em plena rua com manifestações de índole intoleravelmente racista e saraivadas de balas de grande calibre disparadas com impunidade. O país inteiro viu uma dezena de homens armados a fazer fogo na via pública. Não foram detidos embora sejam facilmente identificáveis. Pelo contrário. Do silêncio cúmplice do grupo de marginais sai eloquente uma mensagem de ameaça de contorno criminoso - "ou nos dão uma zona etnicamente limpa ou matamos." A resposta do Estado veio numa patética distribuição de flores a cabecilhas de gangs de traficantes e autodenominados representantes comunitários, entre os sorrisos da resignação embaraçada dos responsáveis autárquicos e do governo civil. Cá fora, no terreno, o único elemento que ainda nos separa da barbárie e da anarquia mantém na Quinta da Fonte uma guarda de 24 horas por dia com metralhadoras e coletes à prova de bala. Provavelmente, enquanto arriscam a vida neste parque temático de incongruências socio-políticas, os defensores do que nos resta de ordem pensam que ganham menos que um desses agregados familiares de profissionais da extorsão e que o ordenado da PSP deste mês de Julho se vai ressentir outra vez da subida da Euribor.
in Jornal de Notícias, 21 de Julho de 2008. Disponível online em jn.sapo.pt/. |
Entretanto
foi-me enviado um texto de Bruno Gonçalves, membro da Federação
das Associação Ciganas e da direcção
do SOS Racismo de resposta ao artigo de opinião sobre o mesmo
assunto do Miguel Sousa Tavares publicado no jornal expresso de sábado,
dia 2 de Agosto, intitulado "Pobres e Mal Agradecidos" que
eu achei pertinente transcrever. |
Boa tarde Dr. Miguel
Sousa Tavares, chamo-me Bruno Gonçalves e sou um cidadão
português pertencente a uma comunidade cigana. Li com atenção
a sua crónica no Expresso e pelo respeito k tenho pela sua
pessoa enquanto escritor e comentador k mais aprecio em Portugal
venho mostrar o meu desagrado pela paupérrima crónica
que escreveu, isto porque o Dr. não fez o que se deve fazer
quando não se conhece uma comunidade, o Dr. escreveu sem o
mínimo de conhecimento das comunidades ciganas, escreveu daquilo
que lhe passaram em criança que são os rótulos
e as histórias fantamasgóricas que se criaram em 5
séculos de permanência em território português.
Bruno Gonçalves |
O texto de Miguel Sousa Tavares está em
http://aeiou.expresso.pt/gen.pl?sid=ex.sections/23491